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Foto do escritorToalá Carolina

O Sabor da Manga


... Fui levada ao topo de uma comunidade carente chamada “Nordeste”, uma comunidade que fica no recheio entre dois bairros de classe média alta de Salvador e no carro, no banco de trás, observava como o carro GOL (1992) tinham dificuldades em passar entre as estreitas ruas onde pessoas passavam com latas de água em carrinhos de maos, outras mulheres com dorso levando água para suas casas/barracos, todas com muita dignidade e resiliência diante daquela pobreza sob um sol escaldante. Suas peles negras, suadas, os olhares altos me passaram uma certa confiança, força, até por isso não senti medo de estar sendo levada para aquele lugar. Julguei acolhedor de certa forma. Olhar nos olhos daquelas mulheres sofridas, dignas e buscando o mínimo para sobreviver me encorajou. Pensei que poderia pular do carro a qualquer momento e pedir para alguma delas me acolher, me proteger. Eu precisava tomar banho, comer. Estava faminta e suja. Meus cabelos que antes eram bem tratados, macios, passaram a ser um emaranhado de piolhos. Minhas mãos e pés descascavam e formavam feridas, algo como pequenos buraquinhos um perto do outro. Passei a brincar com eles. Quando o carro parou em um pequeno barraco de tijolos aparentes eu me deparei com a Edna. Edna estava na porta de seu barraco estreito com um tabuleiro de mangas espada, todas simetricamente arrumadas para serem vendidas para quem passasse na viela. As demais mangas em um balde que antes era de tinta, mas havia sido reutilizado para lavar essas frutas que eram trazidas do CEASA. Edna era mãe da babá na minha irmã caçula que era um bebe ainda. Minha família já havia ido para São Paulo e me abandonado aos 13 anos em uma cidade completamente desconhecida para mim na mão de um pedófilo.

Quando vi o rosto de Edna, me alegrei, senti alívio, me senti protegida. Abri a porta do carro e saltei para abraça-la. Pedi uma manga. Era mais de 2 horas da tarde e eu não comia nada fazia muitas horas.

Nunca vou esquecer o gosto daquela manga que me trouxe um pouco de sensação de estar ali presente, viva, consciente. Como se eu recebesse uma energia vital do leite materno de uma mãe.

Fui entregue a Edna e combinado um preço para ela cuidar de mim. Era bem no meio da comunidade Nordeste e nem saberia voltar a pé para onde eu morava ou qualquer outro lugar mesmo porque eu era uma criança e estava desnorteada pelo abandono e os abusos físicos e psicológicos que estava sofrendo.

Era eu e eu. Tinha que sobreviver, porque eu queria viver, porque eu gostava de mim, de quem eu eram de como eu pensava e via a vida. Tinha passado por um aborto induzido e apanhado muito para expelir o feto, perdi os 2 dentes da frente cujo um dentista da comunidade mesmo restaurou com uma resina mais escura.

Eu não sabia o que seria da minha vida, mas queria viver.

Edna, além de Daniela babá da minha irmã caçula estava já nesta altura e SP com minha mãe, minha irmã do meio, tinham como irmãs e irmão de Dani que moravam no mesmo barraco com a mãe Edna: Adriana, Josy, Jairo e Danilo. Adriana com 23, Josy 20, Jair 15 e Danilo 9. Sendo que a mais velha, Adriana, não gostava de mim de maneira gratuita. Me ofendendo sobre como eu era magra e desnutrida, abandonada pela família, como eu "me achava"e era metida e agora dependente deles para sobreviver.

O pouco de roupa que eu levava em uma mala, foi saqueado na minha presença, como tênis, blusas, até um urso de pelúcia, e isso tudo em minha presença como se dissessem – nada mais da tua vida antiga te pertence. Voce não tem mais família, está sozinha nesta cidade, não é mais uma menina rica com roupas de marca enfim, você não é nada além do que restou.

Acatei porque não tinha o que fazer. Não estava em posição de poder me defender nem me movimentar – para onde iria? A quem pediria ajuda? Quem acreditaria em mim?

A doença de pele que muitos anos depois soube que se tratava de ácido úrico, tomou proporções preocupantes. Eu vestia a mesma meia suja por meses e quando as tirava a pele do pé descolava junto. Passei a cheirar mal. Tinha vergonha do meu cheiro e do meu aspecto.

Finalmente tive coragem de pegar uma tesoura de Edna e cortar meus cabelos, que antes todos admiravam e eu acreditava ser o único atributo de beleza, já não existia mais. Mais uma vitória dessas pessoas de ver a menina rica, branca, de são Paulo, ruir diante dos olhos deles. Me tiraram tudo, menos eu de mim e aquilo os enlouquecia.

Meu corpo de 13 anos com o que hoje acredito estar com 40 quilos no máximo, pois era pele e osso estava cravado de feridas causadas pelas picadas de muriçoca, pois eu dormia na parte superior do barraco, no chão de cera vermelha e me cobria por uma rede de nylon de pesca. Claro que elas faziam a festa! Mesmo dormindo de calça jeans e meia. A noite sentia sim muito frio. Custava a dormir, não por medo, mas por desconforto e estranheza. Era como se eu estivesse dentro de um sonho. Mas não conseguia acordar e sair dele.

Sabe, não lembro de sentir dores físicas. Pela manhã eu descia as escadas de madeira do barraco e fazia xixi num balde. Depois pegava água na cozinha com uma mangueira, enchia uma leiteira e passava sabão de lavar roupa amarelo (era o que tinha) no meu corpo e cabelo. Era Bahia, era muito calor, a água quente se fazia desnecessária, isso também não me causava sofrimento. Depois buscava algo sujo para vestir, pois não tinha nem onde lavar nada, e nem encontrava, pois Adriana e Josy estava vestindo minhas roupas.

Fiquei meses com duas trocas de roupas.

Minha vista era da porta do barraco e das mangas alinhadas para vender, pessoas passando e comprando as mangas até acabarem quase no por do sol.

Um dia me arrisquei e fui caminhando entre as ruas da comunidade e comprei um picolé de coco. Era uma fábrica que fazia picolés que antes na minha vida antiga eu comprava com minha mãe e irmãs na praia.

Agora eu sabia de onde eles vinham.

Outro dia mais confiante, comprei um bolo de fubá vendido na porta de um barraco. Era ruim, era um bolo sem leite. Joguei fora mesmo com muita fome.

O abusador que havia me entregue para Edna, parou de aparecer, consequentemente de paga-la para o encargo de ter uma menor na casa dela para cuidar, era um trabalho, ela havia sido contratada para me manter lá.

Vez em quando ele passava lá, mas ignorava Edna, me lavava para comer algo na Baixa dos Sapateiros, ou na praia, até no Mc Donalds.

Quando ele me soltava na porta do barraco de Edna, passei a ser cobrada do dinheiro. Passei o recado a ele e ele desconversava, dizia que ele havia já ajudado muito e não tinha condições do momento de lhe dar o que fosse.

Passei a ser mais hostilizada, sendo constantemente atacada principalmente por Adriana e Edna, e os demais, permaneciam em silencio. Pareciam discordar das posturas da mãe e irmã, mas como eu, eram dependentes e afinal era a família deles.

Eu era a estranha no ninho.

Quando leio hoje que não existe racismo e ódio contra brancos, eu silencio, mas sei o que vivi, vi e ouvi.

Num dia fatídico, Edna já cansada de nada receber e estar ali me dando guarida e alimento, me colocou para fora pelos cabelos como meu abusador parou o GOL na porta.

Eu abracei ela, resisti. Eu abracei minha algoz que me batia, xingava, e agarrada pelos poucos cabelos que me restavam, porque queria o peito dela. É louco, não sei explicar que sentimento é esse. Eu queria o amor de quem estava me pondo para fora.

Muito fraca e pequena fisicamente falando, sucumbi ao banco do passageiro. Quando Edna fechou a porta batendo -a com força como quem diz “vai embora daqui”- recebi um copo de cerveja gelada no meu rosto. Era de Adriana.

Ela riu. Sentiu prazer. Eu ali reconheci uma expressão de prazer de quem quer te ver na sarjeta e consegue.

Gratuito. O que eu fiz para essas pessoas?

O abusador saiu disparado com o GOL entre as vielas da comunidade e pensa que ele me defendeu? Ele me culpou.

Ele disse que não sabia mais o que fazer comigo e ficou rodando pela Orla. Meu destino era incerto, mas não senti medo. Senti alívio de ter saído daquele lugar com aquelas pessoas.

Percebi que agora eu realmente estava solta e sem nada, portanto, livre. Eu havia me agarrado aquelas pessoas e aquele barraco como família. Era o que eu tinha.

Percebi o poder da inveja, como ela é capaz de realmente destruir a vida de uma pessoa. Eu sequer me olhava mais no espelho, mal tinha cabelos. Estava só o fiapo de pessoa, eu era o que restou.

Passou-se um tempo, fui para outra família em outra comunidade carente em Salvador perto da Lagoa do DIC. Essa é outra história, que se tiver coragem eu conto um dia.

Depois de uma nova surra, outros abusos sexuais e psicológico, resolvi fugir. Neste lugar passei meses me alimentando de suco de laranja da barraca da frente e do resto do pão que sobrava das crianças da casa.

Fugi, pedi socorro na TV Bahia, onde um radialista chamado Walter Junior me socorreu e me levou para uma espécie de COAHB longe de Salvador.

De lá para uma delegacia. Da delegacia para o IML para fazer exames de Corpo de Delito e o delegado ligou para meu avô paterno e fui colocada em um avião sozinha e cheguei em sp, indo morar em um sítio em Itapevi, isolada, já com algumas sequelas importantes psíquicas a ponto de ouvir música clássica o tempo todo na mente, acreditando estar louca, pois essa casa de sítio ficava 100% isolada de um bairro populoso. Era uma música interna que hoje como mulher adulta e formada em psicanálise e psicoterapia, sei o que era. Não era loucura, era defesa da realidade.

Passou-se uns meses, meu avó nos levou, eu e minha família, para morar novamente no Jardim Paulista. Rua 13 de Maio, num apartamento alugado que ele pagava todas as despesas. Ele que levava o pão ela manha, ele que pagava a escola que eu não conseguia frequentar. Eu fingia que ia, mas ficava na escadaria do prédio em silencio até chegar meio dia e meio e eu fingia que estava de volta.

Não conseguia mais frequentar um ambiente sadio e normal. Porque eu havia vivenciado coisas aos 13 que as meninas desconheciam. Eu era um peixe fora d’agua.

Depois de um tempo, Daniela, babá da minha irmã, disse que a Edna a mãe dela e a irma dela Adriana, tinham que fugir da comunidade com as crianças porque Adriana havia matado um namorado que supostamente havia a agredido.

Eu havia silenciado desde então, me tornei quase uma adolescente com um comportamento autista. Me isolava nas escadas, no quarto, ficava com aquela música clássica na mente tocando infinitamente e tentando desligar colocando a cabeça entre as pernas e os braços para desligar quem sabe, aquela música que vinha de mim mesma.

Hoje penso que foi bom ter sido negligenciada e não ter sido levada a terapeutas como psicólogos ou psiquiatras, pois se não tivesse o diagnóstico de “transtorno de estresse pós traumático”, por conta da “música clássica”e episódios de agressividade praticamente diários, automutilação enfim, poderia ter entrado na medicação como uma possível esquizofrenia ou transtorno Borderline.

Minha mãe estava falida, meu avô pai dela sustentando todas nós e mais minha avó adoentada, e com essa história da fuga da Edna e da família dela, minha mãe penalizada, ofereceu nosso apartamento da 13 de Maio para eles se hospedarem. Fiquei aterrorizada. Era inacreditável que aquelas pessoas iriam para SP morar no quarto dos fundos de onde eu havia me refugiado e estava tentando me curar.

Resignei. Não tinha o que fazer. Soltei, entreguei.

No dia que estavam programadas para chegar, pois estavam há mais de 3 dias na estrada da Bahia pra SP, eu passei muito mal. Mas quando o interfone tocou, tomei-o com toda minha força e ouvi o porteiro anunciar: “A Edna está aqui com sua família”. Eu disse: “pode subir”.

Parecia que meu coração iria soltar bela boca e eu fiz xixi nas calcas.

Nem dava tempo de correr e me trocar, logo a campainha tocou. Eu mesma abri a porta. Edna, Adriana e Josy, já o Danilo e o Jairo haviam sidos despachados para o interior da Bahia para cuidados as avós.

Edna me abraçou. Eu a abracei. Chorei. Já Adriana e Josy olhavam de trás do cenário, mudas e com malas e malas estampadas nas mãos.

Não senti raiva, nem mágoa. Acolhi. Não sei porque, nem eu entendo, mas acolhi e foi natural.

Ajudei a carregar as malas de uma vida toda para o quarto dos fundos que era o quarto de Daniela.

Mal coube tudo. Era um beliche e 4 pessoas.

Josy e Adriana foram no dia seguinte trabalhar e morar na casa de uma tia no bairro do Morumbi, restou Edna que passou a ser cozinheira de casa em troca da moradia.

Daniela continuava a cuidar da minha irmã menor.

Passou-se uns meses, Edna estava sempre me tratando muito bem, até com uma certa maternagem. Eu aceitei. Aquele abraço que eu tentei dar nela quanto ela me batia e me expulsava de sua casa eu aceitei. Passei a me sentir curada.

Um dia, no meio de tarde, estava passando Malhação na TV do quartinho dela, eu deitei em seu colo e ela me pediu para escrever duas cartas, para Jairo e Danilo, os filhos que ficaram na casa de parentes na Bahia.

Ali eu percebi que Edna não sabia escrever, meu coração doeu de compaixão. Peguei um caderno e uma caneta e pedi pra ela ir narrando o que queria que eles soubessem e eu fui escrevendo.

De repente Edna se calou. Olhei para ela, e ela estava chorando.

Perguntei o porquê e ela disse:

-Filha, me perdoe pelo que fiz para você. Você é pura e boa, eu no teu lugar não estaria escrevendo essas cartas, mas você está.

Eu sorri, não sei dizer o que senti, uma espécie de alívio por uma pessoa não pensar algo de mim que definitivamente não sou e sim isso é importante pra caramba pelo menos para mim.

Não fiz força para isso, eu solte apenas e fui embora com o coração partido, fui viver ou sobreviver que seja, mas fui.

O tempo colocou as coisas em seus devidos lugares de maneira natural. Não no meu tempo, no que eu considerava justiça.

Quando alguém quem uma ideia formada sobre nós, nada podemos fazer, pois se ela não tem uma convicção, isso é dela, entendi que nada podemos fazer. Mas o tempo sim, esse faz.

Um sentimento destrutivo e injusto pode destruir alguns aspectos da vida de uma pessoa. Podem te tirar o trabalho, a saúde, a reputação (temporariamente), pois a ideia é destruir aquilo que não se compreende ou não se tem alcance. Pura e simples maldade. Porém, não pode tirar a essência. As demais coisas são restituídas. Cabelo, roupas, dinheiro, saúde, alegria, confiança, novas amizades, uma nova vida. Tudo passa a ser parte do passado.

A alegria de uma pessoa perversa não perdura. Não há o que se comemorar. Não há ganhos. Um ato injusto não traz felicidade, apenas uma rasa satisfação momentânea. Depois as contas a se ajustar é com a própria consciência. Só se destrói o que é passível de destruição, nada além disso. Logo, nada se perde.


Depois deste dia das cartas de Edna para seus dois filhos a passei a não mais ouvir a tal sinfonia clássica na minha mente, eu já não precisava mais dela.

"A mente se ajusta sozinha" - Já dizia a Psiquiatra e Psicanalista Dra Nilse da Silveira... assim como as todos as coisas, basta ter paciência.



Toalá Carolina

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